Democracia racial é uma ideia que passa a ser comum no Brasil a partir da década de 1930: a de que não existe racismo em nosso país e que negros e brancos sempre viveram em harmonia. Com o apoio das mídias, essa ideia se tornou a base da educação sobre racismo no Brasil e do entendimento popular sobre a questão.
Com a democracia racial, o racismo é posto como algo distante, que só ocorreria em países onde existiram leis de segregação oficiais – como EUA e África do Sul –, mas não no Brasil, visto que somos uma população miscigenada e que todos possuem um pouco de sangue negro.
A ideia de democracia racial esconde o racismo e minimiza a violência e a discriminação sofridas pelos negros. A miscigenação não apaga o fato de que a população negra sempre ocupou uma posição de desvantagem em todo o processo de formação do país.
Para entender melhor essa reflexão, veja dois exemplos a seguir.
Essa nota mostra que a polícia subia o morro para realizar prisões de desempregados sob a acusação de “vadiagem”.
Observe que o texto da matéria não menciona a raça dos prisioneiros, no entanto, esse território tem raça definida. Podemos afirmar que essa situação permanece atual, tendo em vista que a população negra ainda é maioria nas favelas e nos morros brasileiros.
Fonte: Nota do jornal O Globo, edição de 20 de março de 1950. Clique aqui para acessar.
Aqui vemos a história de uma mulher que foi espancada em uma abordagem policial, levada para a prisão e, sem testemunhas ou julgamento, encarcerada sob a acusação de “vadiagem”. Entretanto, a mulher era trabalhadora doméstica na casa de um juiz – um juiz tão importante que motivou a publicação do caso no jornal. Apesar de não se dizer nada sobre a raça da mulher, você tem um palpite sobre qual seria?
Dica: observe que a mulher é a única pessoa mencionada na matéria que não tem um sobrenome, algo típico da primeira geração de pessoas negras do pós-abolição.
Vemos, aqui, violência policial, abuso de autoridade, quebra dos direitos de defesa e encarceramento injusto, porém, não se fala sobre raça. O problema parece ser apenas social, mas não é.
Fonte: Nota do jornal O Globo, edição de 19 de junho de 1952.
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Katherine Dunham, bailarina e ativista contra a segregação racial, 1956.
Foto: Phyllis Twachtman/ Domínio público. Clique aqui para acessar.
Outro caso que prova a inexistência de uma democracia racial em nosso país foi a circunstância de criação da primeira lei antirracismo: a Lei Afonso Arinos.
No ano de 1950, em um Brasil que vendia ao exterior a ideia de que era racialmente democrático e sem preconceitos, veio se apresentar pela primeira vez Katherine Dunham – bailarina negra norte-americana internacionalmente reconhecida por sua luta contra a segregação racial em seu país e por sua técnica, que mesclava balé clássico e influências africanas. Entretanto, a alegria durou pouco, pois a bailarina e sua comitiva de dança foram impedidos de se hospedar no Hotel Serrador, no Rio de Janeiro: o hotel alegava que não aceitava hóspedes negros no local.
A imprensa brasileira não deu importância ao caso, provavelmente para não desmentir toda a narrativa oficial de que o nosso país não segregava nem tinha o racismo como prática comum. Entretanto, Dunham divulgou o caso aos quatro ventos, fazendo com que sua repercussão no exterior fosse muito negativa e intensa, afinal, era um choque descobrir que o Brasil propagandeava uma mentira – havia, sim, racismo e práticas segregacionista entre nós.
Diante da polêmica internacional, o deputado Afonso Arinos de Melo Franco propôs a criação de uma lei antirracismo, que foi prontamente aprovada para abafar os rumores e as desconfianças internacionais.
Para mais informações sobre o caso de Katherine Dunham, acesse:
A ideia de democracia racial está tão impregnada na sociedade que continua repercutindo em diversos de seus aspectos, dentre os quais:
Para saber mais sobre como a ideia de democracia racial surge no Brasil, clique aqui e assista ao vídeo A ladainha da democracia racial, da historiadora Lilia Schwarcz.
Um dos impactos causados pela democracia racial é tornar o racismo velado e cordial, sendo mais difícil identificá-lo no cotidiano.
“Não sou racista, mas não quero que meu filho se relacione com uma pessoa negra.”
“Isso que eu disse não foi racismo. Minha esposa é negra!”
Já ouviu frases parecidas com essas? São muito típicas do racismo brasileiro. Devido à democracia racial, é difícil que as pessoas percebam o racismo que disseminam, e a tendência é sempre a de achar que racista é o outro, mas nunca nós mesmos. Desse modo, frases, condutas discriminatórias, estereótipos e ofensas em forma de piada vão sendo mantidos e disseminados sem que se note que também são condutas racistas. Esse modo de lidar com o racismo é o que chamamos de racismo velado.
Por sua vez, o racismo cordial é herdeiro direto da ideia de democracia racial: por sermos um país racialmente harmônico, onde todos são miscigenados, é como se estivéssemos blindados de sermos racistas, apenas pelo fato de nos relacionarmos ou sermos gentis com algumas pessoas negras. A frase “não sou racista, minha avó é negra” já virou uma anedota, mas é muito real: no Brasil é possível que uma pessoa notavelmente racista seja casada com uma pessoa negra, tenha um filho negro ou cultive amizades negras. Cria-se uma diferenciação entre “aqueles que conheço, amo e sei que são boas pessoas” versus “os outros, esses em quem não confio”.
A pessoa negra que faz parte do convívio acaba sempre sendo citada como “a grande prova” antirracista.
A Redenção de Cam (1895) é um quadro do artista espanhol Modesto Brocos, pintado pouco depois da abolição e da instituição da República. Nesse período, o Brasil se alinhava ao suposto progresso da Europa e intensificava sua política de embranquecimento, visto que sua população pouco se assemelhava à europeia.
Figura: A Redenção de Cam, Modesto Brocos, 1895/ Domínio Público. Clique aqui para acessar.
A pintura foi usada para ilustrar o artigo do médico e diretor do Museu Nacional João Batista de Lacerda (1846-1915), apresentado no Congresso Universal das Raças, em Londres, em 1911.
Clique aqui e leia o artigo A tela ‘A Redenção de Cam’. E a tese do branqueamento no Brasil, publicado no Nexo Jornal (2018), para entender a relevância desse quadro na discussão antirracismo.
A história do quadro foi por muito tempo uma história comum entre as famílias brasileiras: como a negritude era considerada uma característica inferior e ruim, mesmo as pessoas negras eram ensinadas desde a infância como era mais vantajoso e preferível embranquecer, pois assim seria possível sofrer menos os efeitos do racismo.
Desde muito cedo as mulheres foram aprendendo a alisar seus cabelos com ferros quentes e a afinar o nariz com maquiagens, enquanto os homens andavam sempre de cabelos raspados para não deixar o crespo evidente. Quanto mais próximo do padrão branco, melhor. Assim, famílias entendiam que embranquecer os filhos era uma boa estratégia para garantir que eles pudessem sofrer menos os efeitos da discriminação – tal qual a senhora no quadro, alegre ao ver o neto branco, agora livre da carga negativa que a cor dela carregava.
Esse tipo de trabalho ideológico atrapalhava a identificação dos negros enquanto negros. Pessoas pretas (negros de pele escura) eram registradas como pardos, enquanto pardos (negros de pele clara) eram registrados como brancos. Aos poucos, se identificar como “negro” se tornou algo indesejado, e as pessoas preferiam chamar os negros por eufemismos “menos ofensivos”.
No censo realizado em 1976 – o primeiro que permitiu ao povo brasileiro se autoidentificar racialmente e de modo aberto –, foram levantadas 136 “raças” diferentes no Brasil: a maioria delas eram apenas termos populares para substituir o “branco” e o “negro”, em um país que insistia ser uma democracia racial.
Figura: IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, 1976. Clique aqui para ampliar.
Até aqui, entendemos que a linguagem também é uma ferramenta do racismo. Assim, a dúvida sobre a nomenclatura correta pode surgir: devo dizer “preto”, “negro” ou “afrodescendente”?
Segundo o IBGE, a classificação oficial considera como negros o conjunto de pessoas que se declaram de cor “preta” e “parda”. Entretanto, temos particularidades culturais que devem ser consideradas no trato entre os indivíduos.
Tudo depende da proximidade e da relação que temos com cada um – há os que preferem ser citados como “negros”, enquanto outros preferem “preto”. O importante é não achar que a preferência de seu conhecido é uma regra válida para os demais negros do planeta. Na dúvida, se pergunte: “eu realmente preciso citar a raça da pessoa com a qual estou conversando? Esse é um elemento importante para minha conversa?”. Se sim, e por segurança, use negro.
ALERTA: os termos “moreninho”, “café com leite”, “mulata”, “escurinha”, “mais ou menos clara”, “queimada” etc. são eufemismos, termos racistas usados para se referir a pessoas negras “de um modo mais amigável”, em um mundo onde ser negro sempre era algo negativo e indesejado. Evite o uso deles e respeite a autoidentificação de cada pessoa.